12 de junho de 2015

Aline Perde Para Os Demônios Dela (parte um)

Vamos concordar que no silêncio - o escasso e necessariamente requisitado silêncio - ocorrem muitas coisas fundamentais. Não apenas ocorrem no silêncio, e em silêncio, como também não ocorreriam fora dele nem sem ele. Mas será que no silêncio - o cada vez mais escasso e dificilmente concedido silêncio - poderia haver algum perigo (silencioso, claro)?

Vamos analisar o caso de Aline para tentar alcançar uma conclusão sobre isso.

Assim era Aline: muito nova, e sua pele era tesa e viçosa. Por dentro, agia (sim, assume-se que existem ações no interior) como uma pessoa muito velha, sem ânimos, sem afetações, sem entusiasmos, sem grandes temores pois se conhecia e sabia que jamais iria além dos limites que sabia seguros - sabia porque era velha e esses limites muito antigos.

Seus interesses eram poucos e eram pequenos e fracos, mas também eram constantes e estáveis. Um desses era folhear revistas de moda - mas apenas as que lhe caíssem aleatoriamente nas mãos como aquelas, já desatualizadas e gastas, que espreitam de salas de espera de consultórios de dentistas e de salas de visitas de casas de tias mais velhas. Jamais comprara ou pensara em comprar uma revista de moda para si.

Seu corpo era um pouco rechonchudo e seus músculos eram também tesos, um corpo que parecia anunciar sua personalidade e a história de vida de uma pessoa que nunca se alongava além dos limites, nunca se forçava além de seu estado de conforto, e mantinha uma alimentação regular e constante. Comia, acordava e dormia todos os dias nos mesmos horários, desde criança.

Estava em seu primeiro período na faculdade de Odontologia, carreira que escolhera por influência do pai dentista. Além disso, achava bonitas as roupas brancas das assistentes quando ia visitá-lo em seu consultório para pegar o dinheiro para o lanche da semana ou precisava de sua assinatura em algum documento na época em que ainda estava na escola.

Quando fazia essas visitas, ia andando devagar e ninguém que a cruzasse pela calçada jamais chamava sua atenção, assim como sua figura comum e organizada jamais chamava a atenção de ninguém. Seus passos devagares eram sempre do mesmo tamanho, e neles havia algo de pesado, como nos passos de um elefante dopado. Ia olhando para o chão, apenas levantando o olhar quando não podia evitar de atravessar uma rua.

A faculdade estava sendo para ela, como se pode imaginar, um tanto cansativa. Não os estudos em si, pois nunca tivera problemas em acompanhar as aulas - que atendia com uma pontualidade tão imutável que nunca fora notada - ou as matérias ensinadas - que estudava em casa exatamente o tanto que fosse necessário. O que a exauria era aquele ambiente novo e a forma como ele funcionava, cheio de pessoas correndo pelos corredores, professores que faziam piadas que ela não entendia, atividades que exigiam que ela fosse a outros prédios e entregasse papéis muito diferentes dos que ela entregava na escola. Seus novos colegas também eram muito diferentes dos que tivera a vida toda, pois falavam de coisas que ela não entendia, se comportavam de uma forma que ela não entendia e viviam lhe dando avisos e conselhos que ela também não entendia.

Com sua maneira comum e desambiciosa, Aline destoava, e não estava muito acostumada com isso. Percebia que suas reações - ou melhor, sua falta de reações - eram sempre fora de lugar e divergiam do frenesi e do deboche que pareciam dominar o comportamento geral daqueles à sua volta. Ela percebia que as pessoas notavam isso, a olhavam por tempo muito pouco maior do que o necessário, e pareciam formar ideias sobre ela. A atenção: isso foi o início para Aline.

Agora, ela ia todos os dias para a faculdade de uma forma muito diferente da que ia para o consultório do pai. Ela subia no ônibus olhando para os lados e lá dentro reparava nas pessoas assentadas e nas pessoas que passavam pela janela. Quando descia próxima ao prédio, ia olhando ainda mais as pessoas à sua volta, que caminhavam ao seu lado e tinham o mesmo destino. Depois que passava pelos portões olhava tímida aos que já estavam lá dentro, apenas se dando conta, pela primeira vez, de que talvez fosse uma dessas pessoas a que chamavam tímidas. E assim ia até que arduamente alcançava a carteira em que sempre se sentava, nem na frente nem no fundo da sala, cercada por olhos de todos os lados, que iam chegando aos poucos e falavam, e ia se perguntando intimamente o que era aquela sua condição.

Quando as aulas terminavam, voltava para casa pensativa e aliviada, mas carregando em si uma promessa muda que nunca chegou a compreender. Não compreendeu mas atendia - tentava atender, barrada por sua condição retesada - àquela fome estranha e insasiável. Voltava para casa com fome e com seus passos de elefante dopado. Almoçava com a empregada, sentindo o cheiro de feijão na panela de pressão, o calor que entrava pela janela, a luz branca que cobrira seu trajeto pelas ruas e continuava a invadi-la. Ignorava e continuava pela tarde com fome, estudava antes de dormir, e dormia.


(a ser continuado...)